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O porteiro amigo

Saí do carro com a chuva de verão caindo não me importando com os pingos gélidos que percorriam minhas costas nuas por aquele macacão preto. Torcendo pra não ser meu amigo porteiro, porque embora seja amigo, não deixaria de ser também embaraçoso. Olhei para a portaria que conheço de cor e salteado, agora reformada, com porcelanato ao invés de madeira e móveis modernos ao invés de peças antigas. Era ele. Cabelos ralos e brancos, a camisa azul de sempre. Sorriu, também um pouco embaraçado, e puxou uma conversa qualquer. Disse, como quem joga verde para vasculhar o terreno: Veio passear um pouco? Respondi, como quem quer soar casual para não pesar o momento: Vim aproveitar o feriado. Mas ele sabia. viu nos meus olhos castanhos como castanhas a excitação de uma jovem apaixonada que não quer só passear um pouco no 104, mas que quer tornar essa e outras conversas muito mais frequentes. Subi o elevador, portas agora renovadas, torcendo pro seu turno acabar antes de eu partir. Porque embora se

Eu te amei em silêncio

Eu quase disse que te amava e eu já amava, mas ao escrever aquele parabéns, achei melhor usar a imparcialidade das palavras. Ainda bem porque você nem mesmo gostava de mim. Eu ainda não estou pronta pra falar sobre o assunto. Palavras vem e vão, pensamentos vem e vão, mas tudo fica tão confuso que não consigo formular nada. Então se você está lendo é porque finalmente consegui. Existem sentimentos bons e também existem sentimentos ruins. Tem a memória que me assombra e às vezes finjo que nada aconteceu. Finjo que estou no trabalho e você ainda vai vir me buscar. E tem a raiva  porque enquanto tudo isso acontecia e parecia perfeito, eu fui só uma válvula de escape. A parte que mais doeu  foi ouvir que o que eu mais amava foi o que te afastou: o cuidado. Porque amar é cuidado  e eu não sabia que eu demandava tanto. Agora fico com isso na cabeça, interiorizando traumas antigos sobre o fato de ninguém querer me cuidar. Não como se eu não soubesse fazê-lo sozinha, mas às vezes eu sinto tant

Desculpa se eu fugi

Arquivo: 06 de Março de 2018 Uma vez você postou: "sei lá". Tínhamos acabado de terminar. Tanta coisa mudou, mas esse termo nunca nos deixou. Sei lá se amo, sei lá se fico, sei lá se vou. Sei lá se existo, na verdade. E não é pose de quem quer chamar atenção ou acabar com tudo por alguém. É sobre acabar com tudo por mim. Eu olho para o passado, para as últimas semanas, e não me lembro do último dia em que me senti feliz. Quando me senti como se o mundo conspirasse a meu favor. Agora eu sei: até nos momentos em que essa sensação esteve presente, não era real. Porque eu nunca estive tão em sintonia com a vida como hoje. Eu nunca disse tanto o que eu realmente quis dizer, eu nunca fiz tanto o que eu realmente quis fazer. E ainda assim, parece não ser o bastante, parece não ter sentido. Há momentos em que a esperança vem, mas tenho tanto medo de perdê-la que é nessa fração de segundo que ela expira. Achei que fosse culpa da TPM, mas não é. Então, eu resolvi fugir um pouco. Do nad

A saudade de hoje e de todos os dias

AVISO - 18+ Arquivo: 20 de Março de 2018 Qual foi a saudade de hoje? Bem, se quer realmente saber a minha resposta, tira já a máscara do pudor. Você sabe, eu não sou mulher de nojinho.  A meta da semana foi me controlar, segurar por um tempo essa vontade maluca de me encharcar de você.  Só que a verdade é que não consigo passar mais de setenta e duas horas com esse vazio, literalmente. Então, falhando na tentativa de opressão, cedi aos meus dedos. Embora saiba que eles não passam nem perto do que você me oferece, foi o que restou nessa distância psicológica. Relaxei na cama e pensei. Quando se tem o que já experimentamos, não preciso de vídeos com gemidos ensaiados. Analisei em retrospectiva momento por momento. Revivi sua voz alterada de tesão pedindo pra eu tirar minha blusa, enquanto os olhos percorriam o corpo pela primeira vez despido. Revivi seu toque por debaixo do sutiã, a princípio sutil, tornando-se brusco pela ânsia de querer mais. Revivi minha mão, te apertando, todo pulsan

As quatro estações

Arquivo: 17 de Agosto de 2016  Dizem por aí que não importa se faz chuva ou sol, quem torna nossos dias felizes somos nós mesmos. Isso é verdade, porque durante um grande período andei na contramão; enquanto lá fora fazia quarenta graus, por dentro eu estava gélida. O motivo foi uma tempestade repentina que surgiu na minha vida, um inverno que tem nome e sobrenome. Eu nunca as evitei porque o cheiro da chuva me alucina. Permiti que ele se aproximasse e que fizesse o que tinha pra fazer, não protegi meu coração. O problema é que essas tormentas sempre vão embora. Mesmo que os raios tenham sido os mais incríveis e o assovio do vento nas árvores tenha sido a melhor melodia já ouvida, os destroços ficam pra trás e você, sozinha, terá que lidar com eles. Depois de juntar todos os cacos e depois de alguns meses tentando reconstruir meu lar, finalmente pude sentir outra vez a pele aquecer. O contraditório é que já não estávamos mais no verão, e mesmo assim ele tomou conta de mim sem dar impor

Por que será?

Entrei no elevador, mais um dia que te vejo, nada novo na verdade. Subindo, aquele cheiro que invade: manjericão. Dou boa tarde, ela também. Me seguro e não consigo, preciso elogiar. Eu amo cheiro de manjericão! Ela diz que está fresquinho puxa um talo e me passa. Inalo, fecho os olhos e me vejo naquele jantar. Enquanto você se exercita eu danço na cozinha cantarolando e enrolando maços pra picar, exercendo o linguagem do amor que mais me encanta. Você chega, me dá beijo e vai pro banho, já estou no finalzinho. Nos sentamos, ansiosa. Surpreso, você diz: Caramba, ficou uma delícia! Eu sorrio satisfeita porque ficou mesmo, afinal, tinha manjericão por cima. Suspiro devolvendo o tempero para aquela senhora no elevador. Eu amo manjericão. Por que será?

A carta

Há dez meses eu escrevi uma carta. Sempre me imaginei escrevendo ela. Seriam palavras de despedida, mas na verdade se tornou um pedido de ajuda. Eu evito essa carta. Não é como se eu me arrependesse de ter escrito. É que tanta coisa muda em dez meses e eu não quero revisitar quem eu fui.  Não quero lembrar a minha mente do que eu sentia e correr o risco de sentir de novo. Mas hoje eu revisitei. Com muita hesitação, deu certo. Acho que faz parte do processo cutucar essa ferida, abraçar esse leão que às vezes ainda ouço rugir. Bem de longe, bem fraquinho. Até coloquei a carta na minha lista de coisas para falar com a minha terapeuta, espero que ela não se desaponte. Quero escrever novas cartas. Perdoar quem eu fui há dez meses e há dez anos. Percebo que as feridas não se curam, não pra mim. Elas vão estar ali, e vez ou outra eu preciso cutucar, trocar o curativo, e me lembrar que fingir que elas não existem, não é nenhum remédio.